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Incentivos fiscais do Convênio ICMS 85/2011 escapam de debate

No complexo mosaico da administração pública brasileira, algumas ferramentas fiscais são muito difundidas e, ao mesmo tempo, tão pouco debatidas pelos órgãos de controle. Um exemplo claro disso é o Convênio ICMS nº 85, de 2011, celebrado no âmbito do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz). [1]

Convênios interfederativos se prestam a cumprir as exigências previstas no artigo 155, § 2º, XII, “g”, da Constituição (CF/88) [2], no artigo 1º da Lei Complementar nº 24/1975 [3]. O intuito desses dispositivos é evitar a chamada “guerra fiscal”, um fenômeno do federalismo brasileiro, especialmente no campo do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), em que os estados e o Distrito Federal concedem incentivos ou benefícios tributários, em busca de atrair para seus territórios investimentos, empresas e geração de empregos (entre outras). Em suma, é uma grande competição de “quem dá mais (benefícios) ganha (investimentos)”.

Pois bem. O Convênio ICMS nº 85/2011 autoriza os estados signatários a concederem crédito presumido de ICMS a contribuintes que financiem ou executem diretamente obras de infraestrutura em seus territórios. A alternativa é pragmaticamente sedutora: em um cenário de restrições orçamentárias e entraves burocráticos, por que não permitir que o setor privado aplique o valor de seus tributos diretamente na construção de estradas, portos ou outras obras de infraestrutura? 

O mecanismo opera sob parâmetros definidos: o crédito fiscal concedido é limitado ao valor do investimento realizado e não pode exceder, anualmente, 5% da arrecadação estadual de ICMS do exercício anterior. Sua popularidade é inegável. O que começou como um acordo de vigência curta, previsto para terminar em 2012, foi sucessivamente prorrogado e hoje tem validade até 31 de dezembro de 2027. A lista de signatários, que começou com o Amapá, Maranhão, Mato Grosso, Paraná, Santa Catarina, São Paulo e Sergipe, hoje já abrange 20estados da federação, incluindo potências econômicas e entes com grandes desafios de infraestrutura.[4]

Escape da morosidade em leis e contratações públicas

Essa adaptabilidade encobre um arranjo que opera em uma zona de penumbra jurídica. A popularidade e longevidade do convênio sugerem que ele funciona como uma rota de escape para governos estaduais contornarem as rigidezes e a morosidade percebidas nas leis de finanças e contratações públicas.

Não se pretende, por ora, oferecer um veredito sobre a constitucionalidade do Convênio ICMS nº 85/2011. O objetivo aqui é outro: trazer a lume duas controvérsias jurídicas centrais que ele suscita e, principalmente, questionar o conspícuo silêncio que as cerca nos mais altos tribunais e nos círculos acadêmicos do país. Como um mecanismo de tamanha envergadura e com implicações tão profundas para o direito público pode permanecer à margem do debate jurídico nacional?

Entrave para realização de obras e serviços públicos

A primeira grande controvérsia do modelo autorizado pelo convênio diz respeito a um dos pilares do direito administrativo brasileiro: o dever de licitar. O artigo 37, inciso XXI, da Constituição não deixa margem para dúvidas: obras e serviços públicos devem ser contratados mediante processo de licitação, que assegure isonomia e a seleção da proposta mais vantajosa para a administração. Este não é um preciosismo formal, mas uma garantia fundamental contra o favoritismo, a ineficiência e a corrupção.

O arranjo do convênio, no entanto, cria uma via paralela. Ao permitir que um ente estatal escolha o executor de uma obra pública com base em sua condição de contribuinte de ICMS, ele institui uma exceção ao dever de licitar que não está prevista em lei. Na prática, o contribuinte ou pode executar a obra diretamente ou subcontratar um terceiro, tudo sem o crivo de um certame público e competitivo.

Esse conflito não é meramente teórico. O caso do estado de Santa Catarina, escrutinado pelo seu Tribunal de Contas (TCE-SC), é um dos raros exemplos encontrados que serve como um estudo de caso paradigmático. O convênio em tela foi internalizado pelo Decreto estadual nº 910, de 2 de abril de 2012, que inseriu o artigo 23-A ao Anexo 2 do Regulamento do ICMS/SC (Decreto n. 2.870, de 27 de agosto de 2001), que dispõe:


Art. 23-A. Mediante protocolo firmado entre o Estado e o contribuinte interessado, poderá ser concedido crédito presumido em valor equivalente ao da obra de infraestrutura pública cuja responsabilidade financeira pela execução tenha sido assumida pelo contribuinte (Convênio ICMS 85/11).

No Acórdão nº 982/2020, a corte catarinense analisou este programa e suas conclusões foram contundentes. A auditoria constatou que a responsabilidade pela execução das obras era transferida para as empresas beneficiárias do crédito fiscal, que, por sua vez, contratavam as construtoras por meio de simples “convites”. O TCE-SC classificou a prática, sem rodeios, como uma “contratação irregular da execução de obras públicas, por intermédio de contribuintes”, em violação direta ao artigo 37, XXI, da Constituição. Como resultado, determinou ao governo estadual que se abstivesse de utilizar tal modelo sem a prévia e devida licitação pública. [5]

 

Regime privado e doação ao Estado

Embora não explicitada nos textos normativos, a defesa desse modelo poderia se apoiar na tese de que o contribuinte, ao executar a obra, estaria agindo sob um regime de direito privado, com recursos próprios, para posteriormente “doar” o bem público ao Estado. A discussão que emerge, portanto, é se tal arranjo cria um “sistema de contratação paralelo”, acessível apenas a um grupo seleto de contribuintes de ICMS.

Noutra ótica, é questionável se isso poderia violar a isonomia ao excluir do mercado o setor — especializado — da construção civil que não se enquadra nesse perfil, e se fomentaria uma proximidade opaca entre o poder executivo e os maiores agentes econômicos do estado. A substituição de um processo público e competitivo por negociações diretas levanta debates sobre a observância dos princípios da impessoalidade e da moralidade administrativa, que a licitação visa a proteger.

Renúncia de receita

A segunda controvérsia reside no campo do direito financeiro, onde se debatem duas hipóteses de enquadramento fiscal opostas: o abatimento de impostos (crédito presumido) por obras configura uma renúncia de receita, sujeita aos rigorosos controles da Lei Complementar nº 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal — LRF) [6], ou que se trata de uma operação fiscalmente neutra (uma forma de pagamento).

A caracterização como renúncia de receita se ampara no critério jurídico-formal do artigo 14 da LRF. Segundo essa visão, o conceito de renúncia é amplo e abrange anistia, remissão, subsídio, isenção, “crédito presumido” ou qualquer “outro benefício que corresponda a tratamento diferenciado”. O ponto central aqui é que a incidência da norma não depende do resultado patrimonial (perda líquida de receita), mas do simples ato de conceder um tratamento que reduz o montante que seria arrecadado sob a regra geral. A realização da obra pelo contribuinte, nesse contexto, constitui contrapartida em decorrência da redução carga tributária. Uma vez caracterizada a renúncia, o artigo 14 da LRF exige medidas de controle severas, como a estimativa do impacto orçamentário-financeiro e a demonstração de que a perda de arrecadação foi considerada nas metas fiscais ou compensada por aumento de outras receitas. 

De outro lado, tem-se a tese da neutralidade fiscal, ou da “não perda líquida”. O argumento, de natureza econômica, sustenta que não há prejuízo ao erário (renúncia de receita), pois o Estado troca um ativo financeiro (o crédito tributário) por um ativo real (a obra de infraestrutura) de valor equivalente. Tal tese pode associar-se com o entendimento de que nessa sistemática não haveria um benefício fiscal do ponto de vista financeiro, ou seja, uma redução do ônus tributário, mas sim mera troca do da obrigação tributária principal por uma obrigação de fazer em valor exatamente igual.

A já citada decisão do TCE-SC também adentrou nessa discussão. Nela, o entendimento esposado foi que o Estado estaria “auferindo receitas orçamentárias por via transversa”, de modo que falta de registro contábil da receita reduziu indevidamente a base de cálculo para a repartição de ICMS com os municípios. A partir desse entendimento, o Tribunal assim determinou à Secretária de Estado da Fazenda:

a) a apresentação de plano de ação ou medida equivalente, no prazo de 120 dias, visando ao ressarcimento dos municípios catarinenses, no tocante aos recursos tributários não contabilizados, com o alerta de que o descumprimento do comando poderá implicar na cominação das sanções;
b) o ressarcimento aos poderes e órgãos credores estaduais até o limite dos valores apurados, no caso de haver requisição do respectivo poder/órgão formalizada à Secretaria de Estado da Fazenda e de acordo com os respectivos limites percentuais previstos nas Leis de Diretrizes Orçamentárias correspondentes.

Forma alternativa de pagamento do tributo

Nesse sentido, a decisão da Corte de Contas catarinense parece ter se alinhado à tese de que a operação não constitui renúncia de receita, mas sim uma forma alternativa de pagamento do tributo. 

O debate, portanto, revela um conflito fundamental entre duas lógicas: a orçamentária, baseada no fluxo de caixa e consagrada na LRF, e a patrimonial, baseada no balanço de ativos. A tentativa de reconfigurar uma perda de receita corrente como uma troca de ativos neutra busca flexibilidade fiscal, mas gera questionamentos sobre a transparência, o controle e a integridade do processo orçamentário. O caso de Santa Catarina demonstrou que essa prática tem consequências concretas, como enfraquecer os mecanismos de partilha de receitas que sustentam o federalismo brasileiro.

Após a análise das duas profundas incompatibilidades do Convênio ICMS nº 85/2011 com pilares da ordem jurídica — o dever de licitar e as normas de responsabilidade fiscal —, a questão central se impõe com ainda mais força: por que um mecanismo tão difundido e juridicamente questionável não é objeto de um intenso escrutínio pela academia e, sobretudo, pelos órgãos de controle? 

O paradoxo é evidente: trata-se de um instrumento de alcance nacional que autoriza a execução de obras e a concessão de benefícios fiscais de valor bilionário. No entanto, uma busca por jurisprudências dos Tribunais de Contas e dos tribunais superiores revela que esse assunto está à margem do controle. O Convênio ICMS nº 85/2011 e as normas que o internalizaram a cada um dos seus 20 signatários caminham em verdadeiro ponto cego, com exceção do citado caso de Santa Catarina.

Silêncio e inércia institucional

Diversas hipóteses podem explicar esse silêncio institucional: conveniência administrativa, pressão dos grandes beneficiários diretos e até mesmo a sinalização de uma intenção política emergente em desburocratizar as contratações públicas.

Também é possível que a falta de atuação dos órgãos de controle seja fomentada (dificultada) pela ausência de transparência fiscal que o procedimento induz, já que nessas operações não há trânsito de despesas orçamentárias. O mesmo e antigo problema que cerca o controle das renúncias fiscais. 

O resultado dessa inércia é preocupante. Na ausência de se provocar um pronunciamento jurisdicional, uma prática juridicamente questionável se normaliza pela simples repetição e pelo consenso político-econômico. O silêncio dos órgãos de controle não é neutro; ele se torna uma força que permite a consolidação de um modelo que, no mínimo, deveria ser objeto de profunda reflexão.

Com efeito, não se presta aqui a oferecer respostas, mas sim para convidar ao debate. Os fins de desenvolvimento da infraestrutura, por mais nobres que sejam, não podem justificar meios que contornem controles republicanos essenciais. Cabe à comunidade jurídica — academia, Ordem dos Advogados do Brasil, Ministério Público, Tribunais de Contas e, em última instância, ao Poder Judiciário — romper o silêncio e promover uma discussão séria e nacional sobre os limites da criatividade fiscal e a perenidade dos pilares do Estado de direito em virtude do Convênio ICMS nº 85/2011.

Texto originalmente publicado no site Conjur, em 07 de outubro de 2025.

 

[1] CONFAZ. Convênio ICMS nº 85, de 30 de setembro de 2011. Autoriza os Estados que menciona a conceder crédito outorgado de ICMS destinado a aplicação em investimentos em infraestrutura. Disponível aqui.

[2] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, Brasília, 1988. Disponível aqui.

[3] BRASIL. Lei Complementar nº 24, de 7 de janeiro de 1975. Dispõe sobre os convênios para a concessão de isenções do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 8 jan. 1975. Disponível aqui.

[4] Informações atualizadas até o Convênio ICMS nº 65/2025.

[5] SANTA CATARINA. Tribunal de Contas do Estado (TCE-SC). Acórdão n. 982/2020. Relator: Cons. Cleber Muniz Gavi. Julgado em: 14 out. 2020. 

[6] BRASIL. Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000. Estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 5 maio 2000. Disponível aqui.

Carlos Gondim Neves Braga é auditor de Controle Externo no Tribunal de Contas do Estado do Pará (TCE-PA), cedido ao Ministério Público de Contas do Estado do Pará (MPC-PA) para atuar como assessor ministerial, mestre em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA), pós-graduado em Auditoria Governamental pela Universidade Estácio de Sá, pós-graduado em Direito Tributário pela Universidade de Anhanguera, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade de Anhanguera.

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