Conjur | Inteligência artificial na fiscalização de contratos públicos: mito ou realidade?

GIHAD MENEZES

A IA (inteligência artificial) deixou de ser uma promessa distante para se tornar realidade concreta em diferentes áreas da administração pública. Se, de um lado, ainda pairam dúvidas sobre seus limites, riscos e até mesmo sobre uma possível substituição da atuação humana em algumas atividades, de outro já é inegável sua presença em processos de planejamento, controle e execução.

Esse movimento, que se intensifica a cada dia, aponta para uma transformação na forma como o poder público conduz a gestão de contratos administrativos, mas a pergunta permanece se a IA pode, de fato, substituir o papel do fiscal e do gestor ou sua função é essencialmente instrumental, limitada a apoiar e qualificar a atuação humana?

Convido o leitor a se debruçar sobre esse dilema que transcende os limites da técnica em mais do que algoritmos porque envolve a essência da responsabilidade humana, os contornos da governança pública e os alicerces da segurança jurídica.

Centralidade da fiscalização na Lei nº 14.133/2021
A Lei nº 14.133/2021 representa uma ruptura significativa em relação à tradição da Lei nº 8.666/1993, sobretudo pela ênfase normativa conferida à fase contratual. Se outrora o legislador se detinha de modo quase obsessivo nos ritos da licitação, relegando a execução a um tratamento mais enxuto, a nova lei não hesitou em dedicar dos artigos 105 a 140 à disciplina minuciosa da duração, execução, alteração, extinção e recebimento dos contratos administrativos. Essa densidade normativa é eloquente porque ela traduz a consciência de que é justamente na execução que se consuma a finalidade pública da contratação, transformando o procedimento em entrega concreta de bens e serviços à sociedade.


Nesse microssistema contratual, destacam-se os artigos 115 a 123, que estabelecem deveres rigorosos de cumprimento fiel, mecanismos de prorrogação em caso de paralisações e responsabilidades específicas do contratado, inclusive trabalhistas e previdenciárias. O ponto nuclear, todavia, está no artigo 117, que consagra a exigência de fiscal do contrato. Cabe-lhe não apenas anotar ocorrências e adotar providências imediatas para sanar falhas, mas também comunicar superiores em tempo hábil e agir preventivamente diante de riscos. A lei admite, é verdade, a contratação de terceiros para subsidiar a atividade, mas a responsabilidade permanece indelegável e pessoal, reafirmando a centralidade do agente público nessa função.

A figura do gestor contratual, por sua vez, não é criação da lei, mas dos regulamentos internos de cada órgão ou entidade. Trata-se de construção administrativa destinada a conferir maior racionalidade e coordenação ao acompanhamento da execução contratual, seja pela consolidação de relatórios, pelo controle de prazos ou pela interlocução com fornecedores, por exemplo.

Esse regime normativo demonstra que a fiscalização deixou de ser tratada como apêndice burocrático da licitação para se afirmar como função central do contrato administrativo. Ao valorizar a presença do fiscal e, quando existente, da atuação do gestor, a Lei nº 14.133/2021 reposiciona a execução contratual como espaço decisivo de realização da política pública, no qual se testam a integridade da administração, a boa governança e a eficiência do gasto público.

Esse desenho normativo reafirma a centralidade da fiscalização como atividade indelegável, que exige rigor técnico, responsabilidade pessoal e registros formais, mas, ao mesmo tempo em que fortalece o papel do agente público, abre espaço para uma inquietação contemporânea: como a inteligência artificial se insere nesse cenário?

Estaríamos diante de uma tecnologia capaz de transformar radicalmente a forma de fiscalizar contratos ou de um instrumento meramente auxiliar, cujo alcance deve ser cuidadosamente dimensionado?


Essas questões não comportam respostas apressadas, pois são elas que orientam o próximo passo desta reflexão em discutir os mitos e realidades da inteligência artificial na fiscalização contratual.

Mitos e realidades sobre a IA na fiscalização contratual
O avanço da inteligência artificial no setor público tem suscitado tanto expectativas grandiosas quanto receios difusos. Nesse debate, não faltam vozes que projetam cenários em que algoritmos assumiriam tarefas hoje desempenhadas por pessoas. Essa hipótese, embora sedutora, merece ser analisada criticamente para até onde a tecnologia pode ir e em que medida sua utilização encontra barreiras jurídicas, éticas e práticas.

Um sistema de inteligência artificial pode cruzar dados, identificar padrões estatísticos e apontar inconsistências em faturas ou relatórios, mas sua atuação se limita àquilo que é mensurável e codificado. Por exemplo, ele não mede a temperatura da refeição servida em escolas ou presídios e não percebe se o alimento está em condições de consumo. Da mesma forma, não atesta a qualidade do asfalto aplicado em uma rodovia porque a análise não se reduz à fórmula química registrada em laboratório, mas exige observação empírica da execução, verificação da compactação, aferição da espessura e acompanhamento do desempenho real em uso.

Esses exemplos revelam que a fiscalização não é um apêndice burocrático, mas o ponto nevrálgico da gestão contratual, pois aqui é o momento em que se define se o gasto público se converterá, de fato, em benefício coletivo.

A fiscalização, nesse sentido, cumpre um papel existencial para a contratação pública. Sem sua atuação, não há garantia de que o objeto pactuado corresponda ao objeto efetivamente entregue, tampouco de que os recursos públicos tenham sido aplicados com eficiência, eficácia e efetividade. Também não se assegura que a licitação tenha alcançado sua finalidade social porque o contrato, isoladamente, não produz resultados; é a fiscalização que lhe confere vida, transformando o que foi assinado no papel em realidade concreta para a sociedade.

Mais do que verificar conformidade documental, trata-se de um processo de fiscalização, em que se aferem não apenas os requisitos formais, mas também a economicidade das escolhas administrativas e, sobretudo, a produção de resultados sociais. Uma escola pode receber merenda, mas apenas a fiscalização atesta se a comida é de qualidade, se respeita as normas sanitárias e se contribui para os alunos. Uma obra pode estar concluída, mas apenas a fiscalização verifica se o material aplicado atende ao desempenho esperado, garantindo segurança e durabilidade.


Se a fiscalização é o coração da execução contratual, a inteligência artificial pode atuar como instrumento de fortalecimento dessa missão. Usada com parcimônia e propósito, a IA oferece ganhos expressivos em abrangência, celeridade e objetividade, reduzindo falhas humanas e ampliando a capacidade de controle.

Nas obras públicas, drones e imagens de satélite já permitem confrontar o avanço físico da execução com o cronograma financeiro pactuado. Softwares de visão computacional são capazes de medir a extensão de terraplanagem, o volume de concreto aplicado ou a evolução de uma obra viária, comparando esses dados com o que foi contratado.

Nos serviços contínuos, como vigilância ou limpeza, algoritmos podem cruzar registros de ponto eletrônico, folhas de pagamento e notas fiscais, identificando ausências não justificadas, sobreposição de jornadas ou divergências entre a equipe prevista e a efetivamente alocada. Esses alertas automáticos permitem ao fiscal intervir preventivamente, evitando pagamentos indevidos e fortalecendo a economicidade do gasto público.

Nos contratos de tecnologia da informação, a IA tem se mostrado ainda mais promissora. Logs de sistemas podem ser processados em tempo real, verificando disponibilidade, tempo de resposta e níveis de segurança. Quando comparados a indicadores de desempenho pactuados em contrato, esses dados permitem aferir com precisão o cumprimento das cláusulas de SLA (service level agreement). A diferença em relação ao monitoramento manual é abissal, pois o fiscal passa a dispor de evidências objetivas, geradas de forma contínua e automatizada.

Em serviços de transporte escolar, o uso de sensores e georreferenciamento permite verificar se rotas foram cumpridas e se há desvios injustificados de percurso. Em fornecimento de refeições em presídios, câmeras inteligentes podem registrar volume e porcionamento, auxiliando na conferência das quantidades efetivamente entregues.


O denominador comum desses exemplos é claro, isto é, a IA não decide e não substitui o fiscal, mas amplia sua capacidade de enxergar a execução contratual em tempo real e em múltiplas dimensões. Ela pode liberar o servidor público de tarefas mecânicas, fornece evidências mais robustas para a devida fiscalização e cria condições para que o juízo humano seja exercido com maior segurança.

Essa constatação encontra eco na literatura internacional. Erik Brynjolfsson e Andrew McAfee, em The Second Machine Age (2014) [1], demonstram que a inteligência artificial tende a ser mais eficaz justamente na execução de tarefas rotineiras, repetitivas e baseadas em dados, mas encontra limites quando se exige interpretação contextual, julgamento normativo e responsabilização pessoal. Em outras palavras, longe de substituir o fiscal, a IA deve ser vista como instrumento de expansão da capacidade humana de também fiscalizar contratos públicos.

Conclusão
A inteligência artificial já não é promessa e é realidade no setor público, mas a questão central não é tecnológica e sim institucional e humana. Para que a fiscalização contratual se torne um processo dinâmico, apoiado em dados e em tempo quase real, não basta adotar ferramentas e sim sustentar sua aplicação em três pilares inseparáveis:

– governança sólida, capaz de integrar a IA de forma responsável;
– regulação clara, que estabeleça limites e salvaguardas éticas; e
– atuação humana qualificada, pois fiscais e gestores contratuais continuam protagonistas insubstituíveis.

Nessa perspectiva, a IA pode, sim, revolucionar a fiscalização contratual, mas tal revolução só será legítima se equilibrar inovação tecnológica com responsabilidade jurídica, eficiência com legitimidade e automação com accountability. Em última análise, trata-se de compreender que a tecnologia é meio, não fim, e que seu valor reside em ampliar a capacidade do Estado de entregar resultados à sociedade.


O desafio, portanto, é aprender com a natureza. As abelhas, há milhões de anos, estruturam sua organização coletiva com método, divisão de tarefas e uso eficiente dos recursos. A colmeia prospera porque não improvisa, pois segue padrões e respeita sua ordem interna. Nós, com toda a inteligência artificial disponível, ainda tateamos entre a tentação do improviso e a necessidade do método e talvez aí resida a verdadeira lição filosófica: a IA não deve ser cultuada como oráculo infalível, nem temida como ameaça de substituição, mas compreendida como instrumento que só encontra sentido quando articulado à responsabilidade humana e ao propósito coletivo.

[1] Brynjolfsson, Erik; McAfee, Andrew. The Second Machine Age: Work, Progress, and Prosperity in a Time of BrilliantTechnologies. W. W. Norton & Company, 2014.

Gihad Menezes é advogado, auditor de Controle Externo do Tribunal de Contas do Estado do Paraná (TCE-PR), vice-presidente Regional Sul/Sudeste da Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas do Brasil (ANTC), presidente da Associação dos Auditores de Controle Externo do TCE-PR, graduado em Ciências Contábeis pela Universidade Católica de Santos, master of law em Direito Tributário pelo Insper, pós-graduado em Gestão Pública pela UniRio, em Direito Público pela UNB e em Ética, Valores e Cidadania pela USP e professor convidado da PUC-PR.

Texto originalmente publicado no site Conjur, em 18 de setembro de 2025.